Desde que me vejo como gente, tenho sonhos muito vívidos – tanto sonhos de realizações pessoais, que hoje em dia foram transgolidos pela mentalidade produtiva e são chamados de metas ou objetivos, como também sonhos de gente adormecida. Esses sonhos tão vívidos, no sentido de claro e bem vivido, mas não de lúcido, acabaram virando uma grande discussão com a voz da minha cabeça que tenta entender o mundo. Quando eu tinha 14 anos, não era nada clara a certeza de que sonhos eram sonhos, e a realidade era realidade, já que meus sonhos eram tão vívidos: como alguém poderia ter tanta tanta certeza, de que os sonhos não são a realidade, e o que chamamos de realidade não é apenas um sonho, ou pesadelo? Mas se assim fosse, nos perguntaríamos outra vez se o sonho ou pesadelo não seria na verdade a realidade, e se a realidade dos sonhos não seria apenas um sonho, ad infinitum.
De qualquer forma, meus sonhos – os de gente adormecida – sempre me fascinaram muito. Qualquer um que tem a coragem de conversar comigo antes das 7h da manhã sabe que, além de resmungar, eu vou contar meus sonhos daquela noite. Entre meus 16 e 18 anos, de vez em quando eu até os escrevia, mas eu sabia que os sonhos importantes eu me lembraria. E realmente lembro.
Acontece que, estudando mais filosofia e psicologia, antes de começar a estudar oficialmente a filosofia e a psicologia que eu descobri não ter nada a ver com sonhos, percebi que os sonhos que eu não lembrava também poderiam ter alguma importância. Então, fui ler Freud.
No livro ‘A interpretação dos sonhos’, de Freud, mas quem disse foi um senhor chamado Heinrich von Ofterdingen - e agora, buscando o trecho, vejo que esse não era um senhor, mas um romance, e que o autor do romance se chamava Friedrich von Hardenberg – encontrei o seguinte trecho:
Os sonhos são um escudo contra a enfadonha monotonia da vida: libertam a imaginação de seus grilhões, para que ela possa confundir todos os quadros da existência cotidiana e irromper na permanente gravidade dos adultos com o brinquedo alegre da criança. Sem sonhos, por certo envelheceríamos mais cedo; assim, podemos contemplá-los, não, talvez, como uma dádiva do céu, mas como uma recreação preciosa, como companheiros amáveis em nossa peregrinação para o túmulo.
Acho cômico como esse trecho publicado em 1800 tem um sentido muito parecido com uma piada feita num stand-up que vi por aí, que ia mais ou menos assim:
Imaginemos um futuro em que a gente tivesse que explicar pra extraterrestres sobre como nós, seres humanos, funcionamos. Seria plausível que pelo menos uma parte da conversa se desenrolasse assim:
Seres humanos: A gente come pra ganhar energia, e aí a gente gasta essa energia. No fim do dia, a gente se desliga pra ter mais energia no dia seguinte.
Extraterrestre: Como vocês gastam energia?
Seres humanos: Antigamente, a gente corria, saltava, matava, gritava. Hoje em dia, a gente fica muito sentado esperando a motivação chegar pra ir correr e saltar. Matar e gritar não pode, porque os vizinhos reclamam, mas pelo menos a gente gasta energia também tentando não matar uns aos outros.
Extraterrestre: Se vocês não correm, nem saltam tanto quanto antes, vocês ganham tempo já que vocês precisam se desligar menos vezes, né?
Seres humanos: Na verdade não. Independente de quanta energia a gente bote pra dentro, todos os dias (de preferência) a gente tem que se desligar, porque a energia acaba de qualquer forma. Aí a gente se desliga por pelo menos 6 ou 8 horas, dizem cientistas.
Então o extraterrestre ficaria meio confuso, afinal, talvez a gente poderia apenas botar mais energia pra dentro pra ficar mais tempo ligado? Mas não funciona assim, e é até meio difícil explicar o porquê. E o extraterrestre pergunta:
- E o que vocês sentem quando estão desligados?
Seres humanos: A nossa mente põe filmes pra gente ver pra não ficar muito chato.
Os sonhos são uma recreação muito boa, apesar de alguns serem filmes de terror vindos diretamente da mente de Stephen King depois de usar LSD. Freud com certeza se divertiu bastante com os próprios. E os meus me divertem o suficiente pra eu ter enchido vários cadernos com eles:
Folheando algumas páginas, me deparo com as mais loucas histórias:
Uma menina, talvez Alice, escavando o buraco do País das Maravilhas. Eu era um homem e achei difícil fazer xixi em pé. Eu criava cobras, e um dia sentei sem querer numa planta carnívora que me comeu, e aí minhas cobras comeram a planta. Fui a uma festa com a Rainha Elizabeth. A lua caiu na terra e achei melhor vestir minha melhor roupa para o apocalipse.
Depois de uns três anos escrevendo meus sonhos todos os dias, decidi parar. Depois de três anos, já me lembrava de quase quatro sonhos por noite, e os sonhos que antes eu considerava criativos e mágicos se tornaram blasé. Eu já não me surpreendia com tubarões nadando por corredores, nem de ter 5 filhos e um deles ser um panda. Eu anotava meus sonhos como alguém anota uma lista de tarefas – só que com menos objetivo, porque eu nem sabia mais por que eu preenchia tantos cadernos.
Mas retomei o hábito no fim do ano passado. Percebi que anotar meus sonhos era um pontapé pra escrever, escrever qualquer coisa. E escrever qualquer coisa ajuda a escrever alguma coisa.
Ao contrário do que muitos pensam, é provável – porque qualquer coisa na ciência é provável, e não certa – que sonhos não tenham nenhum significado. Pode ser importante tentar interpretá-los, mas a interpretação em si que é o interessante, e não o sonho. Sonhar que seus pais morreram e que você herdou uma fortuna com certeza não significa que você quer que aquilo aconteça.
Numa mera nota de rodapé de um livro que ganhei de presente, o autor aponta que o neurocientista Rodolfo Llinás propôs que existe uma diferença cerebral entre nosso estado consciente e adormecido que é a ausência de estímulos externos, mas que a atividade intrínseca continua mesmo nessa ausência. Ou seja, o seu cérebro trabalha da mesma forma (entre muitas aspas) se estamos dormindo ou acordados. A “voz na nossa cabeça” – que não é a voz da razão, a razão não tem voz - continua lá, falando com a gente por meio de sonhos. Isso significa que os estados de consciência gerados quando estamos acordados são restringidos pelos inputs sensoriais (pelo que vemos, ouvimos, sentimos), mas durante o sono nosso cérebro diminui o volume dessas informações sensoriais e a atividade intrínseca do cérebro torna-se mais proeminente. É este processo que nos permite sonhar, revelando um mundo interno próprio e único.
Eu imagino esses processos como um sonhar acordado (uma ótima expressão!): ficamos tão focados em nossos próprios pensamentos e processos que ignoramos o mundo à nossa volta. Os sonhos podem ser a manifestação da atividade cerebral mais pura, menos restringida e limitada por processos externos. Pensando assim, talvez a realidade seja apenas um grande sonho mais bem contornado por contextos e situações. Como a pintura em giz de uma criança, que foi contornada por um adulto tentando dar sentido àquelas formas criativas.
Termino então pegando pra mim uma frase de Caio Fernandes Abreu, do conto Os Companheiros (uma história embaçada):
pensando melhor, continuo sem saber, se a realidade é mesmo meio mágica ou apenas levemente paranoica, dependendo da disposição de cada um para escarafunchar a ferida.
Que o movimento comece!
Boa semana,
Maga
Referências porque plágio é feio
Livro A interpretação dos sonhos, Sigmund Freud
Livro Morangos mofados, Caio Fernandes Abreu
Livro An anthropologist on mars, Oliver Sacks
Recomendação da semana
Episódio (já meio antigo mas muito bom) A voz na minha cabeça, do podcast Boa Noite Internet (do
):Filme American Fiction (sobre o mercado editorial atual):